Os barões da ralé
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Waldir: a elegância em pessoa |
Ele fez fama na Lapa, circulou pela Praça Onze e bateu ponto no Estácio.
Brigou de navalha, andou de viés, carregou no trejeito. De terno branco de
linho, chapéu de veludo e sapato couro de cobra, o malandro carioca
atendia por nomes que impunham respeito - Madame Satã, Camisa Preta, Sete
Coroas e João Cobra. Todos viraram sinônimo de bandidagem no Centro do Rio
nos anos 10 e 20 do século passado.
Com o surgimento das primeiras favelas, os malandros logo descobriram um
novo território livre para impor suas leis.
Um dos primeiros jornalistas a subir os morros do Rio e escrever sobre
seus personagens, Benjamim Costallat disse certa vez que “a Favella (atual
Providência) era uma cidade dentro da cidade, onde a lei é a do mais forte
e a do mais valente e a navalha liquida os casos”. Estava se referindo à Zé da
Barra, nordestino bom de briga - e de lábia - que mandava e desmandava na
Favella.
Aos poucos, no entanto, o termo foi sendo suavizado e virou sinônimo
de manemolência, lábia e esperteza. Foi esse malandro sangue bom que fez a
festa nos morros do Rio nos anos 50, 60 e 70 - a maioria deles ligada às
escolas de samba.
Charme pelos becos
Os nomes variavam mas a fama de espertos e mulherengos era a mesma.
Alguns viraram lenda e são quase heróis nas histórias contadas até hoje.
Poucos ainda continuam na ativa arrastando charme e desfilando elegância
pelos becos das favelas. Como Waldir Carolino, de 74 anos.
“Me considero um cidadão esperto, que sabe viver a vida”, resume seu
Waldir, fundador e presidente do Bloco Unidos do Cantagalo de 1963 até 1983.
“Sempre fiz questão de andar na linha. Quando entrava na quadra o
pessoal logo falava: 'lá vem o presidente!' Até hoje só compro sapato por
encomenda e terno sob medida”, brinca seu Waldir, que – como diz o poeta Chico
Buarque, “hoje tem mulher e filho e tralha e tal” – é sócio da
própria esposa num quiosque de flores em Copacabana.
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Dono de quiosque de flores em Copacabana, Waldir sempre fez questão de andar na linha |
Sapato de couro de cobra
“Eu vivi de perto a época de ouro do Waldir no Cantagalo e ficava lá
ouvindo ele contar as suas histórias. Esse aproveitou bem a vida. A gente
brincava que ele era o último malandro”, conta Eidibal Neves, de 63 anos, amigo
de infância e também fundador e compositor de sambas clássicos do bloco do
Cantagalo.
No Salgueiro, berço do samba na Tijuca, Zona Norte carioca, os malandros
faziam o tipo granfino. Filho de Casemiro Calça Larga, outra figura lendária
dos morros do Rio, seu Jorge Casemiro, de 70 anos, não pensa duas vezes na hora
de citar o ban-ban-ban da favela na década de 60.
“Jorge
Louro, esse era o cara! Um negão forte, bonito, se vestia só de linho, chapéu
de veludo e sapato couro de cobra. Dançava muito e tinha as cabrochas dele
espalhadas pelo morro todo. Era malandrão mesmo, mas no bom
sentido”, frisa seu Jorge. “E modéstia à parte eu também sempre andei na
linha. Para ir no samba até hoje só se for de blusão de linho e calça branca. E
comigo é tudo sob medida. Faço questão.”
Lábia e jogo de cintura
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Jorge Casimiro, filho de Calça Larga |
Autor da tese de doutorado “Malandros, marginais e vagabundos”, o sociólogo
Michel Misse estudou a evolução da palavra 'malandro' ao longo do século 20 e
diz que a transformação mais radical aconteceu na década de 50.
“Foi quando o malandro deixou de ser bandido e virou o cara esperto,
cheio de lábia e com jogo de cintura. Esse era o malandro estilizado que
inspirou Walt Disney a criar o Zé Carioca. O Bando da Lua que tocava com a
Carmem Miranda também só se vestia de chapéu e camisa listrada”, explica.
Mas bem antes o fenômeno da suavização do malandro já era detectado por
Noel Rosa. Em entrevista à revista O Debate, em 1935, o
compositor já havia dado uma pista sobre o paradeiro desse novo
malandro do bem: “O morro do Castelo foi abaixo e a polícia ‘espantou’ os
malandros inveterados e ‘escrachou as cabrochas’. Mas o malandro não
desapareceu. Transformou-se, simplesmente, com a sua cabrocha, para tapear a
polícia. Ele já está de gravata e chapéu de palha e ela usa meias de seda”.
Nos anos 60, o malandro sofre nova transformação e de novo desce
para o asfalto. Michel Misse explica: “Todo mundo podia ser malandro, o
comerciante, o político, o cara esperto na esquina. E aí surge o nome marginal
para substituir o malandro”, diz. “Mas a grande novidade nos últimos anos foi o
surgimento da palavra vagabundo nos anos 80, que é uma mistura de malandro com
marginal”, diz.
Ai de quem não respeitasse
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Joãozinho: "Só dava Ieié no baile" |
Desde os tempos de Brancura do Estácio que a malandragem na favela
esteve próxima ao mundo do samba. No Morro da Babilônia, no Leme, Zona Sul
carioca, quem reinava nas noites de baile dos anos 60 era um passista famoso
conhecido apenas por Ieié.
“Só dava ele no baile do Lair e no Seu Justino. Esse era um cara da
noite, super dançarino e vivia cercado de mulher. Quase sempre uma loira!
Aquele era malandro. E figuraço”, conta João Carlos Filho, de 57 anos, o
Joãozinho, do bloco Aventureiros do Leme.
Outra característica marcante do malandro da favela era o jeito de se
vestir. Em entrevista ao Favela tem Memória meses antes de sua morte,
aos 83 anos, Dona Maria falou sobre como era a malandragem no Morro do
Cantagalo dos anos 50: “Os malandros do morro pareciam até doutor, só andavam
na linha e eram extremamente educados com os moradores. Só a presença deles já
era sinal de respeito. E ai de quem não respeitasse”.
Na
Cidade de Deus, conjunto habitacional construído nos anos 60 na Zona Oeste do
Rio, o malandro era um sujeito que não chamava a atenção. “O Caetano não era
extrovertido, fazia mais o tipo misterioso. Ele foi diretor de bateria da
escola de samba e era super querido. Mas também tinha seus inimigos”, lembra
Vera Regina Barros.
Farra, mulher e bebida
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Dicró: boemia e samba |
Com a morte de Bezerra da Silva e Moreira da Silva, um dos poucos malandros
que permanecem acima de qualquer suspeita – e ele faz questão de assumir
isso – é o sambista Carlos Roberto Oliveira, de 58 anos, o Dicró, nascido
e criado na Baixada Fluminense mas freqüentador assíduo da Praia de Ramos (Zona
Norte) desde os anos 60. Fala aí Dicró:
“Malandro é o cara que está de bem com a vida, que leva tudo na gozação
e que não rouba ninguém. Porque malandro na prisão vai aproveitar a vida
como?", brinca Dicró, que gravou em 1995, junto com Bezerra da Silva e
Moreira da Silva, o disco “Os Três Malandros”, uma sátira à pompa dos tenores
Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti. “Sempre fui boêmio e
sambista. Até em velório a gente dá um jeito de se divertir”, brinca.
E para fechar esse papo de malandragem, nada como as palavras de
Cartola, um bamba do samba de favela: “Malandro é quem gosta de briga,
farra, mulher e bebida. Isso é natural. Ladrão, maconheiro ou jogador é
bandido. Disso eu tenho vergonha”. E ponto final.
A Volta do Malandro (Chico Buarque)
Eis o malandro na praça outra vez
Caminhando na ponta dos pés
Como quem pisa nos corações
Que rolaram nos cabarés
Entre deusas e bofetões
Entre dados e coronéis
Entre parangolés e patrões
O malandro anda assim de viés
Deixa balançar a maré
E a poeira assentar no chão
Deixa a praça virar um salão
Que o malandro é o barão da ralé
Homenagem ao malandro (Chico Buarque)
Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
Praça 11, Berço do Samba (Zé Ketti)
Favela do Camisa Preta
Do Sete Coroas
Cadê o teu samba, Favela?
Era criança na Praça Onze
Eu corria pra te ver desfilar
Favela, queremos teu samba
Teu samba era quente
Fazia meu povo vibrar
Até a lua, a lua cheia
Sorria, sorria
Milhões de estrelas brigavam
Por um lugar melhor
Queriam ver a Portela
Mangueira, Estácio de Sá
E a Favela com suas baianas tradicionais
Brilhava mais
Que a luz do antigo lampião a gás
Fragmentos de brilhantes
Como fogos de artifícios
Desprendiam lá do céu
E caíam como flores
Na cabeça das pastoras
E dos sambas de Noel
Correrias, empurrões
Gritarias e aplausos
E o sino da capela
Não parava de bater
Os malandros vinham ver
Meu samba estava certo, sim
Enquanto as cabrochas gingavam
No seu rebolado
No ritmo da batucada
De olho comprido, que nem bobinho
Eu terminava dormindo na calçada
De olho comprido, que nem bobinho
Eu acabava dormindo na calçada
Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br
Como não gostar do Malandro? Malandro é meu amigo, malandro é meu protetor.#SalveAMalandragem
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