Tendo como base para esse capítulo o livro de Zeca Ligiéro, Malandro
Divino, passaremos a abordar a figura central deste trabalho, Zé Pelintra.
Personagem bastante conhecido seja por freqüentadores das religiões onde
atua como entidade, seja por sua notável malandragem, Seu Zé tem sua imagem
reconhecida como um ícone, um representante, o verdadeiro estereótipo do
malandro, ou porque não dizer, da malandragem brasileira e mais
especificamente, carioca. Não raro, encontra-se pessoas que o conhecem de nome
e pela malandragem, mas não sabem que este é uma entidade do Catimbó e da
Umbanda; outras já o viram retratado inúmeras vezes, mas não sabiam que se
tratava de “alguém” e também encontraremos os que o conhecem apenas como
entidade e desconhecem sua origem e história, estes porém, menos freqüentes. O
fato é que a figura de Zé Pelintra, de uma forma ou de outra, permeia o
imaginário popular da cultura brasileira e é retratada de diversas maneiras.
Por exemplo, como nos explica Ligiéro,
na década de
1970 Chico Buarque cria sua Ópera do Malandro. Para o cartaz do espetáculo
teatral o artista Maurício Arraes utiliza a figura de Zé Pelintra mesclada aos
traços faciais de Chico Buarque em um número típico de minstrelsy
norte-americano, tal como protagonizado no teatro de revista e no cinema por Al
Johnson [...] (LIGIÉRO, 2004, p. 142).
No início da década de 1990, o cineasta Roberto Moura lança Katharsis:
histórias dos anos 80, com Grande Othelo no papel de Zé Pelintra, e este seria
o último longa-metragem desse emblemático ator negro, lembra Ligiéro (2004).
Até mesmo a figura de Zé carioca, personagem de Walt Disney teria sido
inspirado em Seu Zé. Ligiéro conta a história:
Em 1940, Walt Disney fez uma viagem ao Brasil como parte do programa
“política da boa vizinhança” criado pelo governo norte-americano – para
pesquisar um novo personagem tipicamente brasileiro. Na ocasião, foi levado com
sua equipe de desenhistas para conhecer a Escola de Samba da Portela. Naquela
noite, a nata do samba reuniu-se, como fizera alguns anos antes com a visita de
Josephine Baker ao Rio de janeiro. Lá estavam as figuras mais importantes do
mundo do samba – Cartola, Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres… Conta-se que
foi Paulo – falante e elegante – quem realmente impressionou Walt Disney e o
inspirou a criar o personagem Zé carioca. Na ocasião o sambista não estava todo
de branco, tinha apenas o paletó nessa cor, mas foi o suficiente, pois essa
peça passou a ser a marca de Zé Carioca [...] (Ibidem, p. 108).
E mais adiante:
O Zé Carioca do Disney, que passou a ser um símbolo do Rio de janeiro e
do próprio Brasil no exterior, fuma charuto e tem um guarda-chuva que ele
maneja como uma bengala. Parece que quem esteve na Macumba da Mãe Adedé foi
Walt Disney, e não Josephine Baker, e que lá viu o Zé Pelintra incorporado,
pois a maneira gingada de andar e o jeito irônico de seu personagem foram
realmente captados da alma do nosso malandro. É difícil acreditar que ele não
soubesse também que o papagaio é um dos animais consagrados a Exu (Ibidem,
p.109).
Seu Zé está sempre representado seja em figuras desenhadas, seja em
estatuetas, de terno branco – de linho e, veremos que provavelmente para a
malandragem não era à toa, segundo Ligiéro (2004) – chapéu de palhinha com uma
faixa vermelha contornando-o, gravata vermelha e sapato bicolor. Essa é sua
representação na Umbanda, o típico malandro – figura que possivelmente ganhou
esse estereótipo à partir da figura de Zé Pelintra.
O terno de linho branco tornou-se o símbolo do malandro por ser vistoso,
de caimento perfeito, largo e próprio para a capoeiragem. Para o malandro,
lutar sem sujá-lo era uma forma de mostrar habilidade e superioridade no jogo
de corpo. Ao contrário dos executivos de sua época, que tentavam imitar os
ingleses, o malandro não usava casimira, tecido pouco apropriado para o clima
úmido dos trópicos. Seu Zé destacava-se pela elegância e competência como negro
[...].
Numa época em que os negros e brancos viviam praticamente isolados,
apesar da existência de uma numerosa população mestiça nas grandes cidades
brasileiras, vamos observar que a figura do malandro torna-se representativa da
dignidade do negro deixando para trás a idéia de um negro “arrasta-pé”,
maltrapilho ou simples trabalhador braçal (Ibidem, p. 101-2).
Porém, sua representação no Catimbó é um pouco diferente.
De pés descalços e calça dobrada até o meio da canela e eventualmente,
como aponta Ligiéro (2004), uma peixeira é retratada em sua outra mão ou junto
a seu corpo. Um pano vermelho amarado no pescoço é sua marca nessa religião e o
chapéu de palha com a fita vermelha contornando-o é característico tanto na
Umbanda quanto no Catimbó embora o tipo do chapéu seja diferente. Mas afinal,
qual a origem de nosso personagem?
Seu Zé torna-se famoso primeiramente no Nordeste seja como freqüentador
dos catimbós ou já como entidade dessa religião. Conforme Ligiéro (2004), “o
catimbó insere-se num quadro nacional de religiões populares provenientes do
Norte e Nordeste, relacionando-se com a pajelança indígena e os candomblés de
caboclo muito difundidos na Bahia”.
Conta-se que ainda jovem era um caboclo violento que brigava por
qualquer coisa mesmo sem ter razão. Sua fama de “erveiro” vem também do
Nordeste. Seria capaz de receitar chás medicinais para a cura de qualquer male,
benzer e quebrar feitiços dos seus consulentes.
Já no Nordeste a figura de Zé Pelintra é identificada também pela sua
preocupação com a elegância. No Catimbó, como já dito, usa chapéu de palha e um
lenço vermelho no pescoço. Fuma cachimbo, ao invés do charuto ou cigarro, como
viria a ser na Umbanda, e gosta de trabalhar com os pés descalços no chão.
De acordo com Ligiéro (2004), Seu Zé migra para o Rio de janeiro onde se
torna nas primeiras três décadas do século XX um famoso malandro na zona boêmia
carioca, a região da Lapa, Estácio, Gamboa e zona portuária. Nessa época,
período de desenvolvimento urbano e industrial, a vida da população afro-descendente
foi profundamente transformada. Havia um fluxo migratório intenso de sertanejos
em direção a capital nacional em busca de melhores condições de vida. Nascem as
primeiras favelas empurrando para os morros os migrantes dos antigos cortiços
derrubados para a Reforma Passos.
Nesse contexto, Seu Zé poderia ter conseguido fama como muitos outros,
pela sua coragem e ousadia obtendo aceitação pelos que se encontravam em
situação como a sua. “Contam alguns que Seu Zé era um grande jogador, amante da
vida noturna, amigo das prostitutas, exímio capoeirista, sambista de rara
inspiração, um verdadeiro bamba”, acrescenta o autor.
Quanto a sua morte, autores descordam sobre como esta teria acontecido.
Afirma-se que ele poderia ter sido assassinado por uma mulher, um antigo
desafeto, ou por outro malandro igualmente perigoso. Porém, o consenso entre
todas essas hipóteses é de que fora atacado pelas costas, uma vez que pela
frente, afirmam, o homem era imbatível.
Acontece com Zé Pelintra um processo inverso ao que aconteceu com outros
famosos malandros. Muitos destes foram esquecidos ou enterrados como
indigentes. Foram lendários para uma geração. Entretanto, com o passar do tempo
acabaram sendo esquecidos. “Para Zé Pelintra a morte representou um momento de
transição e de continuidade”, afirma Ligiéro, e passa a ser assim, incorporado
à Umbanda e ao Catimbó como entidade “baixando” em médiuns em cidades diversas
que nem mesmo teriam sido visitadas pelo malandro em vida como Porto Alegre ou
Nova York, por exemplo.
Sobre a questão da filosofia do malandro, Ligiéro (2004) lança a
pergunta: “Existe uma ética própria, ou o malandro é o precursor da apregoada
‘lei de Gérson’, de obter vantagem em tudo sem dar a mínima para o outro?”. E
cita um pequeno trecho do artigo de Augras para poder então, debater a questão
com a autora citada:
O fingimento, o ardil, a astúcia parecem constituir características de
Zé Pelintra. [...] Tudo nele é jogo, e jogo trapaceado. [...] Ele volta como
entidade na Umbanda-Quimbanda para mostrar a universalidade da lei da malandragem.
Tudo é trapaça, engodo, traição. [...] É assumidamente ladrão, trapaceiro e
marginal. Situa-se nos interstícios do poder institucional. Sua lei é driblar a
lei (Augras 1997 apud LIGIÉRO, 2004, p.104).
“A forma como Augras configura a malandragem de Zé Pelintra o desnuda
completamente de princípios éticos e morais – trata-se de um burlador
embusteiro”, aponta Ligiéro (2004). Porém, não nega que a visão da autora
esteja totalmente errada quanto a “lei da malandragem”, mas propõe “uma leitura
que vá além da sua função psicológica ou meramente reguladora em termos
sociais” – conclui.
Acredito que o malandro não deva ser dissociado de uma cultura carioca
desenvolvida nas primeiras décadas do século XX que se articulava com o mundo
das escolas de samba, do divertimento noturno, do jogo do bicho, da capoeiragem
e da própria Macumba – atividades proscritas e constantemente perseguidas e
combatidas pela polícia da antiga capital da República. Os integrantes desse
seleto grupo de negros e mestiços [...] naturalmente oprimidos e maltratados
como os demais, trabalhavam como músicos ou mesmo artistas de circo, no teatro
de revista, no rádio, e até no cinema da chanchada em seus primórdios.
Disputaram um jogo social em que eram intermediários entre a sua comunidade
negra e pobre e a elite euro-brasileira que controlava a política, a indústria
dos discos e do divertimento e os meios de comunicação (LIGIÉRO, 2004, p. 105).
Pensar além do que Augras pensou é não descontextualizar a figura do
malandro da imagem de seu ambiente em sua época, é notar que esse personagem, o
malandro, não é ou foi a-histórico e conseqüentemente, entendê-lo como ser
construído por uma sociedade que ele também ajuda a construir, ou seja, um ser
sócio-histórico como qualquer um de nós.
Fonte: Dissertação de Igor Macedo Fernandes
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