Há certos eventos que jamais se repetirão. Não podem ser reproduzidos
nem como representação dramática, pois perderiam o caráter único,
transformador, epifânico, potencializador da vida. Exemplifico.
É madrugada do dia 11 de fevereiro e a Portela se prepara para
entrar na avenida. O enredo contará a história do bairro de Madureira. A
bateria está vestida como Zé Pelintra, o malandro seminal. A rainha dos
ritmistas, Patrícia Nery, vem de Maria Padilha. As fantasias,
evidentemente, fazem referência ao Mercadão de Madureira e suas inúmeras lojas
de artigos religiosos ligados ao candomblé e a umbanda.
Desde o ensaio geral da escola, por alguns recados mandados pelo próprio
malandro e pela Padilha, a bateria sabia que deveria pedir licença a Seu Zé
antes de iniciar o desfile. Acontece, então, o momento único. As caixas,
repiques, tamborins, surdos e agogôs param de tocar. Os atabaques começam a
curimba e abre-se um corredor. A rainha de bateria / Maria Padilha, inicia sua
dança sensual, desprovida de pecados, sacralizadora do profano e profanizadora
do sagrado. Sem culpas. Os diretores de bateria bailam no corredor com a ginga
sinuosa, sincopada, festeira e alforriada de Seu Zé. A bateria canta, o público
canta e a madrugada canta o ponto do malandro divino, o Zé das Alagoas, o
do balanço da canoa.
Contemplado o malandro, a bateria retoma o ritmo do samba e a Portela se
prepara para entrar na avenida. Gilsinho, o puxador do samba, vez por outra
assombrará a Sapucaí com a gargalhada vital do Homem da Rua. Os tambores
portelenses sustentarão o samba - para mim o melhor do ano - e a bateria
sairá consagrada pelo juri oficial e pelas premiações paralelas como a melhor
dos desfiles. O malandro gostou da festa e bateu tambor pelas mãos e baquetas
de cada um dos ritmistas.
Aquela curimba portelense conseguiu, em menos de cinco minutos,
sintetizar o que eu tento escrever há tempos, sempre de forma
precária, sobre o perfil civilizador peculiar da nossa cidade. Em um texto
de antanhos, ao tentar expressar que civilização é essa, escrevi mais ou menos
o seguinte:
Brado louvores e toco atabaques para festejar a civilização. Sim, a
civilização que João Candido, Zé Pelintra, Pixinguinha, Paulo da Portela,
Cunhambebe, Cartola, Noel Rosa, Bide, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, Tia
Ciata, Meia Noite, Madame Satã, Lima Barreto, Paula Brito, Marques Rebelo,
Manduca da Praia, Silas, Anescar, Dona Fia, Fio Maravilha, Leônidas da Silva,
Di Cavalcanti, os judeus da Praça Onze, a pomba gira cigana, a escrava
Anastácia, o Cristo de Porto das Caixas, o Zé das Couves, o vendedor de mate, o
apontador do bicho, o professor, o aluno, o gari, os líderes anarquistas da
greve de 1919, a Banda do Corpo de Bombeiros, a torcida do Flamengo, o
pó-de-arroz, a cachorrada, a nau do Almirante, o Bafo da Onça, o Cacique de
Ramos, o Domingo de Ramos, a festa da Penha, a festa na lage e a cerveja
gelada, criaram nesse extremo ocidente. Com baixaria na sétima corda e uma
sonora gargalhada no final.
Foi exatamente isso que aconteceu na avenida nesta madrugada
recente de carnaval. A Portela, sétima colocada pelo julgamento oficial, não
retornará no desfile das campeãs. Melhor assim. O momento único, epifânico,
civilizador, festeiro, celebrador das alforrias do corpo, libertador da alma,
encantado nos arrepiados do batuque, não podia mesmo ser repetido. É feito
o desfile de 1988 da Vila Isabel, a festa da raça com a Kizomba. Naquele ano a
Vila ganhou, mas um temporal impediu a realização do desfile das campeãs. Será
assim com a curimba para Seu Zé e a Dona Padilha que a Portela realizou na
entrada do Sambódromo. Festa de encantaria; Brasil redimido no fuzuê do tambor
suburbano. Irrepetível.
É assim, meus camaradas, que a gente reinventa a vida, zomba do pecado e
transforma o corpo em totem. Na ginga do malandro da Portela, no balanço
dos ombros da Padilha, o silêncio é preenchido e a bateria toca na
cadência do samba. Ele, o samba, essa nossa gargalhada zombeteira que
alumia o mundo.
Por
Luiz Antonio Simas
Fonte:
http://hisbrasileiras.blogspot.com.br/
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