Essa é a história verdadeira de um dos Malandros
mais conhecidos na Boemia da Lapa, Rio de Janeiro, respeitado pela sociedade e
temido até pela polícia, João Francisco dos Santos Sant´Anna mais conhecido
como Madame Satã, a história desse Boêmio nos trás a idéia de como era e como
foi a vida desses ícones das Noites Cariocas... No final do texto, segue o
Filme onde Lazaro Ramos interpreta: Madame Satã.
Entre o feminino e o masculino, a elegância e a indecência, Madame Satã
ganha a Lapa e faz fama como Malandro bom de briga
Nos anos 1970, o
jornal de esquerda O Pasquim recuperou a história de um estranho personagem da
boemia carioca em duas entrevistas. O interesse do público por sua trajetória
foi tamanho que em pouco tempo ele também aparecia em programas de auditório
recontando suas aventuras e relembrando o passado com saudade. Quem era esse
Malandro? “Mulata do Balacochê”, “Caranguejo da Praia das Virtudes” e “Jamaci,
a rainha da floresta” foram alguns de seus tantos apelidos. Em suas
apresentações artísticas, vestia pomposos trajes femininos, ameaçando a moral e
os rígidos padrões da época. Homossexual assumido, negro, pobre e capoeirista,
respondeu a mais de vinte processos, entre eles, treze por agressões, quatro
por resistência à prisão, três por desacato, um por ultraje ao pudor e um por homicídio.
Estamos falando de “Madame Satã”, o codinome mais famoso de João Francisco dos
Santos, verdadeiro mito da malandragem carioca.
“Eu vim ao mundo
junto com o século XX”. Era assim que ele anunciava o ano de seu nascimento,
1900. De infância difícil, foi negociado pela mãe em troca de uma égua quando
tinha sete anos. Antes de partir com o menino, o comerciante de nome Laureano
prometeu que lhe daria estudo, acordo que obviamente não foi cumprido. Em pouco
tempo transformou-se em escravo, fazendo trabalhos pesados sem qualquer
remuneração.
Depois de algum tempo
percorrendo cidades do sertão nordestino, João Francisco conheceu uma senhora
que lhe ofereceu o mundo: trabalho e hospedagem no Rio de Janeiro! Ele aceita a
proposta e parte imediatamente para a capital federal. Chegando à cidade, no
ano de 1907, encontra uma rotina de trabalho não muito diferente da anterior.
Na pensão, limpava, lavava, cozinhava e não recebia nada em troca, exceto
modestos pratos de comida e um colchonete para deitar o corpo no fim do dia.
Por isso, João fugiu e foi viver na Lapa, bairro que logo ficaria conhecido
como o berço da malandragem.
Ao chegar, o menino
encontrou um bairro fixado em torno de uma bela igreja – a Nossa Senhora da
Lapa – e margeado por um imponente aqueduto, que em outros tempos levava água
aos bairros centrais da cidade. Apesar da reforma urbana e social promovida
pelo prefeito Pereira Passos (1902-1906) − que expulsou as populações mais
carentes da parte central da cidade −, a Lapa permaneceu residencial, abrigando
famílias de operários, Malandros e prostitutas. João Francisco fez sua
residência em um dos típicos sobradinhos do bairro.
Durante seus
primeiros anos na cidade, ficou conhecido como brigão profissional, sujeito de
muitos amigos e também de muitos desafetos. Vivia de pequenos trabalhos avulsos
e não levava desaforo para casa nem de policiais. Conhecido por sambistas,
prostitutas, políticos, e principalmente pela polícia, foi levado à delegacia
algumas dezenas de vezes por sua “conduta anti-social”, que incluía agressões,
confusões em bares e ameaças.
Por intermédio de
alguns amigos influentes, João realizou um dos seus maiores sonhos: se
apresentar como transformista. Dublava músicas e dançava vestindo roupas
femininas. O ano era 1928, o local dos shows, a Praça Tiradentes − região
conhecida por suas inúmeras casas de espetáculo. Uma vez alcançado esse sonho,
o Malandro muda sensivelmente sua rotina. Passa a sair dos espetáculos e ir
direto para casa, evita brigas e todo tipo de confusões que pudessem atrapalhar
seu trabalho artístico. Mas um incidente traz de volta a velha rotina das
brigas na figura do guarda Alberto.
O transformista fora
jantar em um botequim da Lapa, perto do sobradinho onde morava. Ao pedir seu
tradicional bife malpassado, percebeu que o vigilante noturno Alberto,
conhecido por sua truculência, estava sentado algumas mesas adiante. Ao avistar
João – que nessa época usava os cabelos na altura dos ombros – o guarda, um
tanto alcoolizado, imediatamente xingou o Malandro.
Mesmo com suas
ofensas sendo ignoradas, o guarda insistiu: “Já estamos no carnaval, veado?!”.
Passados alguns segundos, percebendo que não haveria briga, Alberto decide
partir para a agressão física e atinge João com um soco no rosto. Ainda assim,
nosso personagem brigão vai para casa e tenta se controlar. Não consegue. Volta
ao bar e atira em Alberto, que morre na hora.
João é preso pela
polícia e mandado para o presídio da Ilha Grande em 1928. Mesmo tendo sido
absolvido dois anos depois por ter agido em legítima defesa, a prisão marca
profundamente a trajetória do Malandro. Solto, ele retorna à Lapa, onde passa a
fazer a segurança dos bares e cabarés das redondezas em troca de doses de
bebida e alguns trocados. O trabalho como segurança − além de completar a
renda que obtinha com pequenos furtos − era também uma forma de fazer-se
presente na boemia do bairro.
Seu codinome mais
famoso, Madame Satã, surge somente anos depois dessa prisão. Segundo a versão
mais conhecida deste episódio, foi no carnaval de 1938, quando João vence um
famoso concurso de fantasias promovido pelo bloco carioca “Os caçadores de
viados”. A fantasia premiada representava um morcego típico da região natal, no
interior de Pernambuco. Utilizando adereços dourados e pretos, fez tanto sucesso
que algum tempo depois um policial o identificou como sendo o ganhador do
concurso. Sua opinião sobre a indumentária, no entanto, surpreendeu o próprio
Malandro. Para o policial, ele teria se inspirado no filme “Madam Satan”, do
diretor norte-americano Cecil B. De Mille – filme a que João jamais assistiu.
Mas o apelido agradou, e todos os codinomes anteriores foram definitivamente
abandonados. O nome “Madame Satã” parecia traduzir com precisão sua
personalidade, que fundia elementos contraditórios como o feminino e o
masculino, a doçura e a maldade, a elegância e a indecência. E todo Malandro
precisava de um apelido. Seus contemporâneos eram Meia-noite, Sete-Coroas e
Beto Batuqueiro, para citar alguns que ficaram na memória da boemia.
Embora sua fama tenha
começado nos anos 1920, foi só por volta de 1940 que Madame Satã passa a ser
conhecido e reconhecido como o Malandro mais temido da Lapa, o mais brigão, o
que jamais teria se esquivado de uma briga com a polícia. E sua
trajetória tortuosa reflete as transformações dos significados da malandragem.
Bem no início do
século XX, a idéia de Malandro estava vinculada a um tipo de homem mulherengo,
vadio, jogador e brigão. O chapéu panamá, o lenço no pescoço, o sapato
cara-de-gato e principalmente a navalha compunham seu visual. Nesse momento, o
Malandro era alguém que perambulava por bares e cabarés, conhecia e respeitava
seus pares e não fugia de brigas, onde quer que elas ocorressem – foi esse o
lado que marcou Madame Satã.
Já no governo Vargas
(1930-1945), percebe-se uma sensível alteração. Com a intensa valorização do
trabalho e do trabalhador, a “malandragem” passa a constituir um “mau exemplo”
para a população. Surge então a conotação de burla ao trabalho, que, por sua
força, ainda pode ser facilmente percebida hoje em dia. Por isso, dizia Moreira
da Silva (1902-2000), o criador do samba de breque: “Malandro é o gato, que
come peixe sem ir à praia”.
Ao longo da década de
1950, quando o samba cede lugar à bossa nova, Copacabana então substitui a Lapa
como espaço de boemia e divertimento. São os anos do desenvolvimentismo: os
cassinos são fechados, a era dos cabarés entra em decadência, os sobrados da
Lapa representam uma estética e um modo de vida ultrapassados. Com todas estas
inovações, a figura de Satã também entra em declínio, e o incidente que
culminou na morte do sambista Geraldo Pereira marca o começo de seu fim.
A briga com Geraldo
seguiu os mesmos moldes daquela que levou o guarda Alberto à morte: ambas
ocorreram na Lapa, durante a noite, com a presença marcante do álcool, e
começaram com uma ofensa a Satã –, novamente dirigida à sua sexualidade.
Fazendo jus à sua fama de brigão, o chamado “Geraldo das Mulheres” declarou, no
restaurante A Capela, que adorava “dar porrada em bicha”. Com isso, Madame Satã
partiu para cima de Geraldo e o atingiu com um soco de direita – foi o
suficiente para que o sambista não recuperasse os sentidos e falecesse minutos
depois.
É claro que este
episódio contribuiu para aumentar ainda mais a fama de Malandro valente. Madame
Satã não foi oficialmente acusado de homicídio por causa de um laudo médico que
atribuiu a morte de Geraldo a um derrame cerebral. No entanto, a partir deste
incidente Madame Satã ficou cada vez mais exposto aos olhos da lei. Não por
acaso, nesse mesmo ano sua trajetória na malandragem foi bruscamente
interrompida.
Acusado de aplicar o
“suadouro” – golpe da época que consistia em roubar os pertences de rapazes
enquanto eles se distraíam com alguma prostituta –, Madame Satã retorna ao
presídio da Ilha Grande. Desta vez sua estada é mais prolongada, e ele fica
preso por mais de dez anos. Em 1965, Satã recupera a liberdade e segue para a
Lapa. No entanto, seus comparsas haviam morrido e a malandragem, tal como ele a
havia conhecido, não existia mais. O jeito foi voltar para a Ilha Grande, onde
passou a criar galinhas, pescar e cozinhar para alguns amigos.
Procurado pelo
Pasquim e depois pela TV, Satã ora recusava a autoria de muitos dos crimes que
lhe foram atribuídos, ora criava histórias ainda mais fantásticas sobre “sua
pessoa”, como ele mesmo gostava de dizer. A trajetória do boêmio mais famoso do
país acabou interrompida definitivamente por um câncer pulmonar em abril de
1976. Morreu em um hospital público, ao lado de uma de suas filhas adotivas.
A recente produção
cinematográfica “Madame Satã” (de Karim Aïnouz, 2002) retomou a importância
desta personalidade curiosa e conta parte de sua história. Hoje, a presença de
Madame Satã é atestada em muitos artigos de jornais, na Internet, e até mesmo
por acadêmicos que se debruçam sobre a malandragem ou sobre o bairro da Lapa.
Das mais diferentes formas, as histórias do bairro e as do personagem se
misturam, e um ajuda a manter o outro vivo na memória carioca.
Por Paula Lacerda atua no Centro Latino-Americano
em sexualidade e direitos humanos e é autora da dissertação “o drama encenado:
assassinatos de gays e travestis na imprensa carioca” (UERJ, 2006) e por Sérgio Carrara é professor do instituto de medicina
social da UERJ.
Assista ao Filme: Madame Satã